Seu encontro com Fatumbi
Informativo: Como você conheceu Verger e o trabalho dele?
Barrinhos: Na década de 70 eu fui a Lagos para o FESTAC 77, Festival de Arte e Cultura Negra da Nigéria. Em paralelo acontecia um coloquium sobre os caminhos dos negros dentro da África e fora dela. A delegação brasileira era formada por 60 pessoas, com nomes significativos como: Emanuel Araújo ,Olga de Alaketu, Claude Morgan, Gilberto Gil, Paulo Moura, Ruben Confete, Zózimo Bulbul, Yeda de Castro, Rubem Valentin, Waldeloir Rego, Fernando Mourão, Clarival do Prado Valladares, Otávio Araújo, Juarez Paraíso, Maurino Santos e Francisco Bikiba. Abdias Nascimento, auto-exilado, também estava lá. Não fez parte da delegação oficial, mas participou do coloquium onde fez discursos e críticas sobre a situação do Negro no Brasil. Caetano Veloso também estava presente.
A nossa equipe de gravação era uma das poucas com brancos trabalhando no evento e em alguns deslocamentos pelo interior da Nigéria percebíamos a presença de arapongas de plantão.
Nos modernos estádios, teatros e cinemas ver espetáculos fascinantes sendo aplaudidos por multidões. E com um pouco de sorte era possível encontrar Mirian Makeba ou Stevie Wonder passeando nas ruas e ganhar um autógrafo. Durante 30 dias, 60 mil negros de todas as regiões do mundo estiveram apresentando sua arte e diversas manifestações culturais em uma cidade construída para sediar o evento.
Lá eu me descolonizei com a descoberta da cultura negra, marcado pelo inesquecível som dos tambores da República Popular do Burundi. A experiência foi um divisor de águas em minha vida. Conversei com muita gente, gravei outras tantas, ouvi diversos idiomas, inúmeros dialetos e no meio de tanta informação sobre a cultura afro dois nomes ficaram marcados na minha memória: Pierre Verger e Mestre Didi.
Informativo: Como vocês se conheceram pessoalmente?
Barrinhos: Ainda na década de 70 passei por alguns países em processo de libertação na América Latina, África e no Oriente Médio. Produzi trabalhos que que grandes amigos levaram à Jornada de Cinema da Bahia, ao Festival de Cinema do Masp, ao Festival Mundial de Documentários em Dresdem (Alemanha) e ao consagrado Festival de Cinema de Havana.
Em Cuba conheci os solidários cineastas brasileiros Caca Diegues, Cosme Alves Neto, Leon Hirzman, Alex Viany, Thomaz Farkas , Leon Cakoff; "compas" guerrilheiros e documentaristas de toda a América Latina; competentes roteiristas e as lindas atrizes de cinema de Cuba e da Colômbia. A inesquecível recordação é a amizade que surgiu com Titón, Thomas Gutierrez Alea, um dos diretores mais respeitados e premiados em todo mundo, e admirável revolucionário.
Depois de Havana fui ao sul do Peru e me recolhi no silêncio do deserto de Huacachina. Nas dunas “el viento“ me disse que o ciclo de gravações de revoltas e de revoluções estava encerrado. Descobri que queria fazer do meu trabalho um instrumento de paz e de educação popular, com vídeos sobre o patrimônio histórico do Brasil. O poder politico, a fama ou dinheiro não eram minhas motivações. Era hora de criar um novo roteiro para minha vida e para o meu trabalho.
E em busca de outro cenário para viver, voltei ao Brasil, e fui morar em Mar Grande, Ilha de Itaparica, na Bahia. Assim que as coisas se ajeitaram lembrei que Verger estava próximo. “É só fazer a travessia com lanchinha, desembarcar na rampa do Mercado Modelo e procura-lo em Salvador “, disse minha companheira Ivete enquanto, com o querido amigo My God, via o livro dele “Retratos da Bahia”.
Depois de idas e vindas, a fotógrafa e editora Arlete Soares e a querida Rita Angulo me apresentaram a Verger em uma festa. Assim que me viu Verger perguntou: “Então, porque o senhor quer fazer um trabalho comigo?”. Eu respondi: “Porque você é fotógrafo e eu também. Fez filmes e eu também. É de escorpião, é de Xangô e eu também”. Ele sorrindo, com a mão em meu ombro, perguntou: “Quando começamos?”.
No dia seguinte em sua a casa fiquei extasiado quando vi aquela quantidade enorme de latinhas de chá de vários lugares do mundo empilhadas nas prateleiras Cada latinha tinha negativos delicadamente embalados em papel manteiga e as informações de cada foto anotadas com sua letra miudinha. Foi ali pensei em fazer um vídeo a partir das fotos que Verger fez quando chegou ao Brasil. Selecionamos imagens do carnaval do Rio de Janeiro, da Bahia e de Pernambuco. A ideia era revelar, ampliar, filmar as fotos e criar, com movimentos de câmera, com Carlinhos Eduardo, uma narrativa que contasse de forma simples uma história do carnaval do Brasil nos anos 40.
Com a ajuda de dois queridos amigos, Mimito Gomes e José Amancio da produtora Mandury 35, consegui equipamentos. Os recursos para produção vieram com o apoio do genial Carlos Magaldi. Não tínhamos a ambição de ganhar nada, foi tudo pelo prazer de registrar para a eternidade o trabalho de Verger.
Pierre Verger nunca tinha trabalhado com vídeo-tape e ficou encantado quando, no estúdio, mostrei os equipamentos e como tudo acontecia. Percebi que o trabalho deveria ser dirigido por ele, para que ele tivesse o prazer da realização, e assim foi. Depois gravamos a sua narração, com textos escritos por ele mesmo, e eu editei o nosso vídeo. Assim nasceu o primeiro documentário em vídeo-tape de Verger no Brasil!
Apresentei o documentário finalizado para Ivan Isola do MIS - Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, que imediatamente abriu espaço para a exposição das fotos selecionadas e para a exibição do vídeo. O público, a grande imprensa, consagrados críticos de TV e de cinema e formadores de opinião fizeram elogios ao nosso trabalho.
Carnaval Brasil Anos 40 foi um sucesso!
Dias depois, foi emocionante acompanhar Verger ao aeroporto, quando ele partia para Paris. Ele foi receber as homenagens do governo da França e a medalha Legion D'honneur. Na bagagem uma fita VHS onde ele mesmo escreveu "Carnaval Brasil Anos 40".
Mais um documentário gravado, novas emoções e novos amigos!
Gratidão eterna a todos que me ajudaram nesta feliz realização.
Valeu mon ami Fatumbi.
Merci!