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Seu encontro com Fatumbi

No último mês iniciamos uma conversa com Carolina Cunha, para conhecer melhor os caminhos que a levaram à Fundação Pierre Verger. Na biblioteca comunitária do ECPV há vários dos livros publicados pela baiana radicada em São Paulo, que se confundem com a história que ela conta aqui de forma tão poética.

Lancamento livroFundação Pierre Verger: Além de escritora, você também é ilustradora. Conte um pouco de sua trajetória e como Pierre Verger surgiu na sua vida.

Carolina Cunha: Desde cedo, quando era menina na velha capital da Bahia, meu lugar natal, onde costumava viver, frequentemente me pegava sozinha pensando que na lonjura por trás daquele mar, o vento era livre pra passar por muitos lugares e depois voltar. Ainda que pouco sabendo, este foi o profundo princípio de uma aprendizagem essencial que não está relacionada com teorias.
Mais tarde, despertei meu desejo pelo esclarecimento, persegui o caminho com vários professores e leituras, guiada pela força da palavra, escrevendo poemas esparsos, esboçando desenhos. Viajei. Voltei. Então, descobri: carregava o vento dentro de mim.
Entretanto, foi só em 1993 que pela primeira vez tive a honra de adentrar a casa dos ancestres africanos, o mundo mágico dos terreiros. Visitei os importantes Candomblés, seguindo um roteiro místico religioso extraordinário pelos locais símbolo da resistência e da afirmação dos descendentes de africanos, nas festas que ali se celebravam. E foi este mesmo o ano em que finalmente alcancei de conhecer Pierre Verger, por ampla recomendação do muito artista e amigo Carybé.

 

Como vocês se conheceram?

Fui ao encontro do venerável Babalawo, que na época estava com 91 anos, no Morro do Corrupio, na Engenho Velho de Brotas. Saudei pela primeira vez meu falecido mestre, em seu quarto, numa clara e iluminada tarde de primavera, onde pela primeira vez o ouvi recitar as palavras sábias dos tempos imemoriais. Naquele momento extraordinário se fez presente uma assistente muito atenciosa que, parando meio curvada em frente à porta por um segundo, o reverenciou respeitosamente — Agô nilê ôôô!!1 —, pedindo licença para entrar. Ao que ele acudiu com ligeira resposta: Agoiá!2 — revelando afeição mútua. Era a primeira vez que eu via minha mãe Cici também. Este acontecimento fora sobretudo inacreditavelmente propiciado por outros dois formidáveis filhos de Oxóssi. 

Cici trabalhou nos últimos anos de vida de Fatumbi com ele na casa vermelha. A partir do trabalho de identificação dos negativos de países africanos ambos compartilharam intensamente suas ideias e muitas informações: um legado de ancestre a ancestre.
Ele, velho e não velho, de olhar claro, lúcido, memória impecável, profundamente imerso na revisão de seu magnífico livro Ewé sobre as folhas sagradas. Ela, calma, intuitiva, cuidadosa em mostrar nos arquivos dele as fotografias e notas correspondentes às questões que eu trazia, ia tirando uma cantiga aqui, outra ali, um itán cá, outro acolá, amplificando muitíssimas vozes intemporais. Meu contentamento era o maior possível.
Contei-lhes sobre o meu fascínio pelas lendas dos orixás, pelas estórias fabulosas de animais; confessei meu grande entusiasmo por ilustrar literatura. Ele entendeu tudo. Como se a sua existência fosse já um oráculo. Disse assim: — Quem bem sabe contar estórias é ela.

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Na biblioteca comunitária do Espaço Cultural Pierre Verger estão vários livros que nasceram deste belo encontro. Em que medida Verger e Cici interviram no seu processo de produção?

Cada um deles individualmente é, para minha especial sorte, uma fonte dinâmica de esclarecimento concentrada na serenidade. Nesse espírito, eles se fizeram meus mestres, me transformaram. Desde lá, venho registrando o que pode ser registrado, completando meus estudos, aprendendo a admirá-los. 

Com tal motivação, iniciei minhas pesquisas, os primeiros registros das coisas vistas e ouvidas, dos ensinamentos formais e informais transmitidos diretamente, numa prática esteticamente delicada, em busca de uma linguagem própria. Acabei por embarcar numa verdadeira jornada literária, da qual nunca mais retornei, afastando-me de vez da publicidade, profissão para a qual fora habilitada. Trazia os ouvidos atentos, tudo queria saber o nome: das plantas, dos pássaros, das ferramentas, dos toques.

 

E foi só o começo, não é Carolina? Até hoje você e Cici são parceiras de estudo e de pesquisa.

Nesse caminho todo inclusivo, um livro de cada vez foi concebido sob a sombra do alto bambu. Foi ali que ela me ofereceu a transmissão de um ensinamento que não tem idade. Ter a permissão de permanecer sentada ouvindo-a pronunciar com doçura e sutilezas o ensinamento dos antigos sábios, é algo extraordinário. Me sinto totalmente comprometida de modo ativo e criativo com este aprendizado. E não posso deixar de me emocionar ao lembrar o cuidado e o interesse com que ela leu, fez acréscimos, correções, anotou cada obra — em especial quanto à grafia dos termos nas línguas originais, às definições dos glossários, e às particularidades das figuras representadas; considerando que tanto o texto quanto as ilustrações de cada livro passaram por diversas etapas e foram sucessivamente retrabalhadas com a sua supervisão. Só tenho que agradecê-la por ter me aconselhado com muito amor todos estes anos, e por confiar no meu empenho. Mo dupé, ala fun Iyá, Eeepa Baba mi!3

 

Atualmente você trabalha em algum novo projeto de livro?

Estou preparando as ilustrações do próximo título da coleção Histórias do Okú Láilái, dedicado a Oxóssi.


27737Qual é a sua foto preferida de Verger?

Esta foto feita nas Águas de Oxalá, em Lauro de Freitas, é de uma força delicadíssima. Vejo muito mais do que um jogo de sombras, contornos e silhuetas. Ela me leva a viajar no tempo sem fim, ao lugar primordial onde o mundo começou, com as façanhas dos deuses.

 

Você conheceu Verger já aos 91 anos. Foi tempo suficiente para conviver com tanta experiência acumulada?

Há uma porção de coisas que eu não tive tempo de perguntar a Fatumbi; que nós não chegamos a conversar, pra ele me explicar. Mas aí está minha Cici com a mão no baú a expressar sua determinação de disseminar o ensinamento, trazendo o longe pra perto, zelando pela herança legada por ele com muita dignidade. Ela guarda a grande tradição e a transmite; não é nada para si. 

Como o farfalho das folhas do Idako4 ao vento muda o ar de tudo, as lendas dos odus de Ifá que Cici nos conta sobre as glórias dos orixás preservam do esquecimento a memória dos nossos avós e fazem com que a gente tenha fé, com que a gente tenha um passado mítico.
O que é uma coisa extraordinária? Eu diria que é o tempo em si mesmo, o maior contador de histórias. O tempo em si mesmo é um ser que completa o céu e a terra, e que nos torna a todos um pouco parentes do alto bambu. As palavras vem e vão, oscilam como o bambu perante o vento dos antigos sábios. É preciso a gente se dispor a escutar. Por isso, ainda agora quando abaixo minha cabeça para render-lhe homenagens, como nos velhos dias, penso apenas que hoje é o começo.

1. Agô nilê ôôô!!: Licença para entrar na sua casa, eu te saúdo com grandes reverências.
2. Agoiá!: Entre rápido!
3. Mo dupé, ala fun Iyá, Eeepa Baba mi! Eu agradeço a minha mãe, que me cobre com o pano branco da família de Oxalá, agradeço e saúdo a meu pai.
4. Idako: ou Dankô; Bambu, bamburral.