• Print
  • FaceBook
  •   
  • Twitter

Entrevista de Maurice Baquet e Pierre Boucher por Gilberto Gil

mensageiro entre dois mundos capaO texto abaixo é a tradução de partes da entrevista filmada de Maurice Baquet e Pierre Boucher por Gilberto Gil, realizada em Paris, em 1998, durante a filmagem do documentário Pierre Verger, Mensageiro entre dois mundos, de Lula Buarque de Hollanda, produzida pela Conspiração Filme.

Gilberto Gil: Senhor Boucher, Senhor Baquet, vocês conheceram bem o Verger, moraram com ele, na mesma época... Vocês podem me contar como e quando vocês conheceram o Verger?

Maurice Baquet: Pois, bem... Foi há muito tempo atrás! Mas tenho muitas lembranças boas de Pierre Verger, já que, quando cheguei em Paris, - com o meu violoncelo, para entrar no Conservatório de Paris -, fui morar numa casa que a cidade de Lyon emprestava aos artistas. E, imagine só, encontrei um quadro desta casa! O quadro da casa onde morávamos Pierre Verger, um amigo suíço chamado Hüni e eu. E se estou evocando este amigo suíço, é porque, numa determinada época da vida de Pierre Verger, este amigo Hüni partiu para o Taiti. Houve na vida de Pierre Verger uma ruptura depois da morte dos pais dele, quer dizer, com o falecimento da mãe, momento à partir do qual ele mudou completamente de vida.

Pierre Boucher: Ele herdou da gráfica da mãe. Foi com este dinheiro, com a herança, que ele pôde viajar para  Taiti.

GG: Depois da morte da mãe dele...

62188MB: Foi. Foi aí que ele mudou. Antes, ele andava sempre de chapéu de coco, roupas pretas, sobretudo preto, guarda-chuva, porque ele representava os cartazistas famosos de uma agência que se chamava “Aliança Gráfica”.  - Era maravilhoso! - Da qual  Pierre Verger era o representante. Portanto, sempre andava muito bem vestido, chapéu de coco... E aquele amigo suíço de quem falei, Hüni, era, de algum modo, o office-boy - ele executava todos os pequenos trabalhos - naquele agência de cartazistas. Então foi ali que a gente se conheceu. Já que lhe falei desta casa.... (tira o quadro que está atras da cadeira dele e se dirige ao Pierre Boucher). Eu vou esconder você Pierre! Tudo bem? Pronto.  Aqui está a casa onde morávamos Pierre Verger eu e Huni

GG: Era a casa emprestada pela cidade de Lyon?

MB: É sim! A prefeitura de Lyon tinha dado a casa para hospedar pintores. E eu, já que conhecia bem o meio artístico  de Lyon, também me beneficiei... Et Pierre Verger ia dormir lá freqüentemente. E era tão divertido então, porque... Pois bem. Isto era em Malakoff, um subúrbio perto de Montrouge, perto de Gentilly. É Malakoff. Não sei bem...,mas acho que não existe mais hoje em dia. De todos os modos, encontrei este quadro pintado por aquele amigo suíço que morava lá com Pierre Boucher, aqui na sua frente... Era uma vida um tanto agitada, sabe...

GG: E o ambiente dos anos 30 e 40?

MB: Você sabe, na França, entre os anos 30 e 40, vivemos mesmo uma época de transição. Surgiram vários grandes movimentos sociais, entre os quais o chamado de “Frente Popular”. E eu pertencia a um grupo - que mais tarde ia se tornar famoso - chamado “Outubro”. A gente escolhera este nome por causa da Revolução russa de 1917, mais tarde, obviamente, a gente se desolidarizou um pouco daquele momento... Era portanto um movimento [.....]

Quando a gente falava no meio da rua, a gente se manifestava a favor das greves, a favor dos movimentos sociais. A gente tinha  textos de Jacques Prévert. Você conhece o Prévert, não é? Pois bem, o nosso autor era o Jacques Prévert. E o Pierre Verger , como fotógrafo, seguia este movimento... Agora, Pierre Boucher  vai lhe dizer como Pierre Verger chegou à fotografia!

PB: Quando a gente conheceu Pierre Verger, a nossa turma estava montando uma agência que chamamos Aliança Foto. Já existia a “Aliança Gráfica” de [Cassandre?], e, como éramos todos fotógrafos, resolvemos criar a Aliança Foto. Com Marie-Jeanne Eisner, uma alemã... italiana por parte de mãe e alemã por parte de pai, que era judia... E uma judia em Paris, só podia ser para escapar do Hitler. E ela veio conversar com a gente...

GG: Isso foi bem no início da guerra?

PB: Foi, sim. Foi em 1939.

GG: - 39...?

PB:... 39. Então, a gente pensou: já que existe uma “Aliança Gráfica”, vamos montar a Aliança Foto. Foi então que o Verger disse: “Eu vou participar da Aliança Foto!” E a partir daquele momento, Eisner passou a vender as nossas fotos.

GG: Ensinou a cámera?

PB: E como eu ensinei a fotografia ao Pierre Verger. Verger começou a viajar pra lá, pra cá, para Taiti, na Espanha, na China, etc. Ele fez reportagens que se venderam no mundo inteiro. Na época, era muito raro, um fotógrafo de Paris podendo viajar desse jeito. E então, a gente tirou um monte de fotos. Todos nós. Eu fui para o Egito, para o Brasil, etc.

GG: E sobre a origens familiares de Verger? Sobre as origens da família?

MB: ... Não sei bem... Só sabia da existência da mãe dele...

GG: Na Bélgica, não?

PB: Sim, ele era de Bruxelas, acho eu.

GG: De Bruxelas. Uma família belga.

PB: Ele tinha uma gráfica lá. Uma gráfica que ele vendeu quando a mãe faleceu, e o dinheiro da herança permitiu que ele viajasse.

MB: E foi então que ele mudou totalmente de vida...

PB: Ele entrou na nossa turma...

MB: Uma turma de desportistas alegres, a gente fazia canoagem, mergulhava, esquiava...

PB: A gente fazia nudismo!

MB: E o Pierre não era muito esportivo! Ele tentava acompanhar gente, e a gente gozava da cara dele, gentilmente, porque... por exemplo, a gente fazia aquelas piruetas apoiados nas mãos, e ele, quando tentava fazer isso, caia feito uma pedra!

PB: [.....] na piscina, um dia, a gente jogou uma bola na cara dele e...[.....]

GG: Ele não sabia nadar?

MB: Sim, nadava... Digamos que ele tentava... E também, a gente tinha, como dizer, encontros com as nossas bem-amadas, era sempre muito...

MB: Bom, cada um tinha seus romances...

PB: Ele teve uma namorada que se chamava Totó...., lembra?

Grupo OctobreGrupo Octobre, Paris, Anos 30MB: Lembro... Não sei se era... Enfim, ele gostava muito dela. Mas acabou casando com a Marthe [Maurice?], do grupo surrealista.

(procura uma foto)

Olha! Acabo de encontrar a fotografia, a única que existe, é a foto do grupo Octobre.

GG: Ah, é...

MB: Está vendo? Deste grupo Octobre vou lhe indicar algumas pessoas famosas. Jean-Louis Barrault. Já ouviu falar? Jean-Louis Barrault. E este, é o Mouloudji. Aqui, tem o amigo de um pintor belga bastante conhecido, que se chama Labisse, Félix Labisse. Este, eu sempre o mostro porque era ele que financiava..., era o único do grupo que tinha algum dinheirinho! Este era Marcel Duhamel. Foi ele que criou a “Série Noire”! Você conhece os livros da “Série Noire”?

GG: A “Série Noire”?

MB: Os livros policiais da coleção “Série Noire”. Com Chandler, com Dos Passos, John [.....]. É muito conhecida aqui, esta coleção.

PB: Ele (o Marcel Duhamel) fazia traduções.

GG: - Héhé...

MB: Ele (M.Duhamel) tinha trabalhado muito nos hotéis, nos Estados-Unidos, sabe, então, tinha assinado contratos com Hemingway, com Dos Passos, Dashiell Hamett, essa gente toda!

PB: - Bara?

Maurice Baquet (tirando a foto das mãos do P.B):  Todos os amigos da época se encontram nesta foto. Isto data em meados de julho de 1936.

PB: Ah, é? Preciso anotar isso...

MB: Foi no mesmo período em que surgiu na França um movimento político chamado “Frente Popular”, - ou seja: os socialistas no poder junto com os comunistas -, mas tinha  também a guerra que iria ser declarada pouco tempo depois. E houve a guerra da Espanha, não é, você ouviu falar... A guerra da Espanha parou todo o movimento social na França. É isso.

GG: Entendi.

MB: ... Tentei explicar a situação em poucas palavras.

GG: E a vida de boêmia, e essas coisas...?

MB: Claro.

GG: Ele (Pierre Verger) era um play-boy? No verdadeiro sentido da palavra?

MB: Ele talvez teria gostado ser um!

(risos)

Mas ele compensava.... Na verdade, no grupo dos amigos,  tinha gente para quem ele representava algo mais do que o play-boy que ele teria gostado de ser. Mas ele compensava isto por uma simpatia, por uma gentileza, realmente...

(preocupado pelo comportamento do P.B que tinha sumido por baixo da mesa e reaparece)

Que que você foi fazer lá em baixo?

PB: Minha caneta tinha caído! Estava anotando a data!

MB: De que? A foto é de julho de 1936!

PB: Pois é. É isto que quero anotar. Julho de 1936.

Maurice Baquet (para Gilberto Gil): Você não tinha nascido!

GG: Não, eu [.....] Isso foi 6 anos antes de eu nascer.

PB: - Héhé! Você não tem o negativo da foto?

GG: Nasci em 42.

MB: Em 42...

PB: O negativo disso, você não tem?

MB: Acho que tenho, sim, o negativo desta foto. Vou procurar...

PB: Era bom você procurar mesmo! Ó, veja só, aqui está a Germaine...

MB: Tá, tá... Espere um pouco, que a gente volta a falar nisso já já...

GG: Monsieur Verger  falava freqüentemente da arte primitiva. Esse conceito, de arte primitiva, ele o adotou antes, como uma coisa de extrema importância para os estudos, a profissão, o trabalho dele?...

MB: Vou lhe contar... De repente, você fica decepcionado... Mas, para quem viveu aquele momento, é bem difícil imaginar que, muitos anos depois, todos esses acontecimentos iam tomar tal importância, iam se tornar tão importantes. Então, pode parecer superficial o que estou lhe dizendo, mas, uma vez que ele mudou de vida e partiu, a gente continuou se comunicando por cartas, mandando cartões postais. Quando ele passava por Paris, a gente se encontrava com muito prazer, lembrando precisamente aqueles bons momentos que passávamos juntos outrora, momentos da mudança entre o senhor muito digno de antes e aquele que queria  partir e respirar outros ares... Mais tarde, também recebi noticias dele porque faço teatro também. Há alguns anos atrás, tive a oportunidade de fazer uma turnê nos países da África. E uma vez, em Cotonu, quando, falei que conhecia o Pierre Verger, o pessoal de lá... não é que ficaram aos meus pés, não diria isso, mas...

GG: E a sua impressão de lá...,da vida em Cotonu, da arte...?

MB: Bem... Confesso ter uma queda, uma queda grande... adoro os países da África! Tenho lembranças maravilhosa de apresentações realizadas nas universidades africanas, como a de Kinshasa, ou a de Cotonu, etc.

GG: A propósito disto tudo, da África, da arte africana, e tudo isto... Por exemplo, a influência de gente como Picasso sobre a obra do Pierre Verger, sobre o trabalho do Pierre Verger... houve uma influência? Ele já se interessava por  pessoas como o Picasso, como o Gauguin?

MB: Claro... Aliás, - a partir dos anos 20, digamos - todos os meios artísticos na França ficaram fascinados pela arte africana. É obvio que isso marcou a gente. E cada vez que entro num belo museu, cada vez que eu ia visitar um museu na África, eu pensava no Pierre Verger. Não tanto porque ele fez essa aproximação entre os negros da África e os negros da América, ou porque ele escreveu  livros sobre este sujeito, mas eu pensava nele como amigo, entende? Na Nigéria, tem um museu de esculturas de não sei quantos anos antes do Cristo. Uma coisa extraordinária! E muitos escultores e pintores, na França, foram influenciados por aquela arte. Aliás, continua sendo assim.

 (interrupção - voz off pedindo para mostrar a foto.)

GG: Pode mostrar a foto?

MB: Esta aqui?

GG: A de Taiti.

MB: [.....], em Taiti, no Brasil... Depois, a gente soube onde ele morava na Bahía... Enfim, os filmes, e tudo isso... A gente ficava feliz quando recebia noticias dele através da televisão!

GG: Ele  fez filmes também?

PB: Fez...

MB: Você quer dizer como cineasta?

GG: É, como cineasta, por que ele tinha uma câmera de cinema...

Paris, Anos 30Paris, Anos 30MB: Sabe, quando ele voltava a Paris, a gente marcava um encontro. Agora vou lhe mostrar... Não estou com a reportagem completa, mas, um dia que passávamos frente à igreja Nossa Senhora de Paris, e sabendo do meu gosto pelo montanhismo - porque fui alpinista -, ele me disse: “Você não está a fim de subir lá em cima de Notre-Dame?”

Falei: “Estou, porque não?”

Ele disse: “Eu fico aqui em baixo.”

Então, comecei a escalar as torres, a pé... e olha só até onde subi! Isto, é o pára-raios de Notre-Dame!

(mostra a foto do pára-raios com ele subindo)

PB: Existe outra foto com você de frente!

MB: Olha no que deu!

GG: Mostre a foto para câmera! E fale um pouco sobre o que aconteceu antes e depois das viagens dele, da volta ao mundo que ele deu...

MB: Não sei bem se foi mesmo uma volta ao mundo... Pois ele parou, não foi? Parou no Brasil!

GG: Depois de ter viajado pela Ásia, pelo resto da América do Sul...

MB: É...

GG: Depois de Taiti...

MB: Taiti, foi antes de 1933. É, faz muito tempo. Foi quando ele resolveu  mudar de vida, foi quando, como explicou Pierre Boucher, a herança da mãe permitiu que ele viajasse bastante. A primeira viajem que ele fez, foi no Taiti.

PB: A Córsega antes! Em primeiro lugar, ele percorreu a Côrsega. Descalço!

Maurice Baquet (risadas): É! É verdade! Porque, depois de ter deixado a roupa preta, ele andava de short e descalço. Era verdadeiramente o início de uma nova vida! Então ele [.....]

(mostra a foto com um rapaz para Gilberto Gil)

Isso aí, é Taiti. Para mim, é uma lembrança bastante emocionante, pois este rapaz ia morrer pouco tempo depois. Morreu...

GG: O rapaz da fotografia?

MB: É. Pouco tempo depois, alguns meses mais tarde, ele ia morrer de febre tifóide. Ele estava morando numa pequena ilha...

GG: Lá, no Taiti?

Moorea, Polinesia francesa, 1933Moorea, Polinesia francesa, 1933MB: Em Rugutu. Uma ilha pequena. Como eu tinha sido colega dele durante todos meus estudos, isso tudo me afetou, a foto é uma lembrança... E tem essa outra foto também, que você deve conhecer, pois ela foi publicada tantas vezes...

(outra foto)

É o mesmo rapaz...

GG: Faz parte de um dos ...

MB: É. E você vê, aqui - não sei se dá para ver bem - Mas olha bem, dá para ver aqui “Pierre Verger”, o que atesta bem da autenticidade da foto. E esta daqui, não é uma maravilha?

GG: É. E então, antes de partir e viajar, aqui, em Paris... tinha os bairros negros. Os bailes negros...

MB: Sim!

GG: Dá pra falar um pouco sobre isso?

MB: Claro!

PB: Rua Blomet

MB: Isso!... Pierre está com a foto...

(retoma a foto das mãos do P.B)

A gente tinha um grande amigo, que se chamava Loris. Fabien Loris. Ele atuou  num filme francês famoso chamado “Les enfants du Paradis”.

GG:  “Les enfants du Paradis”...

MB: Loris fez o papel do matador. É ele, no filme, que usa um bonê e tem uma flor na boca, é ele quem mata... E Loris era um grande amigo nosso. Éramos todos apaixonados pela arte negra...

GG: Sim, sim...

Maurice Baquet (indicando Loris na foto): É este!

É, é um grande amigo, e todos nós adorávamos ir aos bailes negros.

GG: Deve ser, já que o Verger dizia que o baile negro foi a primeira grande influência que marcou ele.

MB: Com certeza.

GG: ... no que diz respeito ao mundo negro, à vida...

MB: Sim, sim...

GG: ... à cultura negra...

PB: Rua Blomet!

MB: Rua Blomet, era fabuloso! A gente ia lá quase todos os sábados! A gente ficava ouvindo a clarineta, aqueles instrumentos todos, e a gente dançava... Pois é. Só que depois, eu fui tocar nos Estados-Unidos durante  dois anos, e fiz grandes amigos, como Dizzy Gillespie...

GG: Dizzy Gillespy?

MB: Dizy Gillepsy, e também o saxofonista [Harry Corner?], o saxofonista de Duke Ellington. Fui muito amigo deles.

GG: E a amizade, e o relacionamento entre vocês e o Verger?

MB: Por mim, a amizade sempre ficou viva. A gente se via bem menos, mas cada vez que ele passava pela França, ele aparecia. Uma vez, a gente se encontrou na casa do Pierre, que morava também nas imediações de Paris. E ele (Pierre Verger) ficava num pequeno hotel - você deve saber - ao lado da rua da Montagne Sainte-Geneviève... Lá tem um pequeno hotel maravilhoso, en pleno Paris, ao lado do Panthéon...

GG: ... onde ele ficava!

MB: É. Onde ele ficava. Era um hotel bem antigo com um jardim. E o Pierre tinha lá um quarto especial. Havia o prédio principal do hotel, mais alguns quartos numa casinha no jardim, e havia...

GG: Cada vez que ele chegava, ele ligava...

MB: Ligava! Sim. Aliás, uma vez, ele me mandou uma revista, brasileira, na qual ele tinha colocado uma foto dele lendo um livro, o único livro que escrevi. O livro se chama: “Parece bife de vitela”...

GG: ... que o senhor escreveu?

MB: Um livro da minha autoria, sim, que eu tinha dado para ele. E naquela revista, encontrei uma foto com ele lendo o meu livro! A pesar das distâncias, a gente sempre conservou...

GG: ... conservou a amizade!

MB: ... e as lembranças. Isso é extraordinário!